quinta-feira, 18 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 282 - Emanuel Lomelino

Sabes, Celan, desconheço se a tua ligação emocional com a morte era mais do que revolta por Auschwitz e, por isso, não sei se este nosso não-tabu pode, de alguma forma, ser comparável.

Apesar da liberdade que me dou ao falar amiúde sobre ela, porque morro constantemente, e ao contrário de ti, não é um fascínio mórbido que me move, mas sim a consciência lúcida de uma inevitabilidade.

Posso dizer-te que, da minha parte, a morte nunca vislumbrará medo nos meus olhos ou coração. Não me intimida pelo breu, pela incerteza do que vem depois, nem pela imagética associada.

Mesmo desconhecendo a forma como a definitiva vai reclamar-me à vida, sei que ela espera por mim e está cada vez mais próxima. E quanto mais o relógio avança menos tempo sobra para falar dela.

Espero apenas que os meus discursos, quase tão negro como os teus, não me levem a um final igual. Neste momento prefiro ser abraçado por ela do que abraçá-la.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 281 - Emanuel Lomelino

Por mais inclusivo e tolerante que se seja aos diferentes pensamentos das múltiplas doutrinas literárias contemporâneas, existem confissões que, ao pregar a boa-nova, espargem paradoxos que só criam raízes nos menos avisados.

Estas facções evangelizadoras da literacia moderna, ao mesmo tempo que se apresentam estratificadas, criam uma auréola classista pela transmissão das suas mensagens

As liturgias são ocas de coerência estilística, não por definição profética propositada, mas por défice cognitivo inerente. Não existe raciocínio lógico fundamentado na solidez de ideias inovadoras, tampouco incentivo ao arrojo.

As eucaristias são cerimónias de pretensão e ufania mascaradas de certame abrangente, não por crença filosófica, antes pelo engodo pastoral dirigido aos devotos.

Os grã-mestres usam o eruditismo e eloquência das palavras frívolas para magnetizar a crendice dos fiéis simples, num catecismo de verdades e presságios que só a eles se aplica.

Por tudo isto louvo, cada vez mais, o meu entendimento agnóstico, que me impede de ingressar nessas seitas.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 280 - Emanuel Lomelino

- … Claro que conheci o professor Licínio! O sujeito mais louco e estimado da aldeia. Foi com ele que aprendi a ler, como muitas gerações desde o tempo em que os meus pais eram crianças.

Transformou a sua garagem num gigantesco salão de leitura, com as paredes forradas a livros, que as editoras lhe enviavam continuamente, e a porta sempre aberta para quem quisesse entrar.

Ele passava o dia a ensinar as letras, a formar palavras, a construir frases, aos mais novos, enquanto incentivava os maiores a pensar no que liam e a escreverem as suas próprias histórias.

Não era estranho vermos, além de crianças pequenas e adolescentes, o salão pejado de adultos, que aproveitavam para ler os livros que ali havia e tentavam cometer a proeza de fazer o professor Licínio sair para a rua, coisa que ele nunca fez em vida, nem mesmo para comprar bens essenciais, que encomendava, no início por telefone, depois por internet, porque havia outra porta, ao fundo da sala, que comunicava com a sua casa e ele tinha jurado que só sairia dali no dia em que não lesse um livro.

Só o conseguiram retirar daquela casa aquando do seu funeral.

Diário do absurdo e aleatório 279 - Emanuel Lomelino

Quando, do corpo macerado pelos afagos do tempo, evolam os últimos resquícios de promessas verdes, no recanto mais esconso dos céus nascem nuvens grávidas de dor e lágrimas.

As gaivotas do pensamento, sobressaltadas pela premonição de uma aguda tempestade, guincham maus agoiros enquanto enterram os seus pousos nos grãos de massa cinzenta, como quem procura refúgio em porto seguro.

A chuva empedrada, capaz de romper a macieza do mármore, asfalta a praia da razão com dúvidas e uma película esbranquiçada desregula o raciocínio lógico.

Sem lua nem marés para dominar a intempérie da mente, o eixo do mundo desintegra-se e o corpo fica à deriva, entregue ao capricho da fortuna aleatória.

Resta esperar que alguns raios de lucidez consigam romper a densidade dos cúmulos sujos e iluminar um novo caminho, com menos obstáculos debilitantes.

Diário do absurdo e aleatório 278 - Emanuel Lomelino

Sempre que mordo as palavras por dizer, falece-me o apetite de ser e fico a mastigar húmus e raízes desidratadas.

A cada frase mal proferida, expira-se-me a resistência à solitude, num abraço autofágico embrulhado em conformismo.

Pereço-me, sobretudo, nos episódios de excessiva sensibilidade autoimposta por altruísmo bacoco.

Desencarno-me a cada oblíqua troca de razões em que predominam lugares-comuns e frases feitas.

Sucumbo-me nas alvoradas indiferentes e nos pretextos crepusculares.

Fino-me na ausência de aceitação aos detalhes básicos em detrimento da grandeza fútil.

Feneço-me pela cegueira táctil à necessidade de eremitismo pontual e meditativo.

Apesar de tudo isto, o silêncio não anuncia a minha morte porque tenho morrido sonoramente vezes sem conta, tantos são os estertores lamentosos como trovões.